THE HOBBIT (1982, ZX Spectrum)

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E neste mês de dezembro de 2012 finalmente chegou aos cinemas o aguardado The Hobbit – An Unexpected Journey, de Peter Jackson. Trata-se da primeira parte de uma nova trilogia do aclamado diretor da saga O Senhor dos Anéis, dessa vez adaptando para as telonas o livro The Hobbit, lançado em 1937 por Tolkien e hoje considerado um prelúdio para O Senhor dos Anéis.

É razoável supor que toda essa “hobbitmania” atual se estenderá pelos próximos dois anos e que dará origem a uma tonelada de games baseados no filme, dando o ar da graça em tudo o que é aparelho imaginável – consoles domésticos, videogames portáteis, celulares com Android, iOs, etc. Não vai ser a primeira vez que isso acontece: em 2003 ,a Vivendi Universal lançou o esquecível The Hobbit, um game baseado no livro, para Playstation 2, Game Cube, Xbox, Windows e Game Boy Advance.

No entanto, o livro de Tolkien já marcou época na história dos games – e já faz muito tempo que isso aconteceu, na verdade. Foi há trinta anos atrás, no já distante ano de 1982. Pelas mãos da desenvolvedora Beam Software e da publisher Melbourne House, o clássico livro de Tolkien deu origem a um game que marcou época, vendeu como água no deserto, exerceu enorme influência no desenvolvimento de jogos a partir dali e, até hoje, é cultuado por retrogamers do mundo inteiro. O nome do jogo, é claro, era The Hobbit, lançado originalmente para o microcomputador britânico ZX Spectrum e depois adaptado para os micros Commodore 64, Amstrad CPC, BBC Micro, Dragon 32, Oric Atmos, Apple II, TRS-80 PC e MSX.

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The Hobbit era um adventure-texto, um gênero de game muito popular no começo dos anos 80. Se você não é familiarizado com a história desse estilo de jogo, clique aqui para ler a nossa matéria especial sobre adventures texto.

Os text adventures, naquela época, eram ótimos para soltar a imaginação e permitiam uma grande amplitude criativa. Representavam uma forma de o jogador usar mais o cérebro do que os dedos e se dedicar a games que demandavam mais raciocínio e estratégia do que reflexos rápidos, fugindo da tradicional ação arcade do tipo “atire sem parar nos alienígenas” e que inundava o mercado de games da época.

Mas, por mais que se aprecie adventures, é preciso reconhecer que os jogos daqueles tempos pecavam por dois defeitos graves: primeiro, o parser (sistema de análise sintática e reconhecimento de palavras) desses antigos jogos era muito limitado, aceitando apenas comandos rápidos e restritos, sem permitir muita abertura para o jogador expressar as ações que queria realizar. Segundo: o uso exclusivo de texto na tela, sem suporte gráfico algum, acabava se convertendo num fator de monotonia e limitação técnica, fazendo os text adventures parecerem extremamente monótonos e desinteressantes.

Mas então, The Hobbit chegou em 1982 ao ZX Spectrum, para virar tudo isso do avesso!

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Segundo a programadora Veronika Megler, que desenvolveu o game junto com Philip Mitchell, “Nós jogávamos Scramble e Pac-Man e escrevemos versões destes jogos para outras plataformas. Por isso, tendo criado games baseados em gráficos e jogado as versões originais deles nos arcades, para nós parecia simplesmente errado o fato de que os adventures não tinham gráficos. Nós não víamos eles como uma categoria diferente, então a decisão de incluir gráficos em The Hobbit pareceu natural e razoável“. Já existiam outros adventures com gráficos lançados anteriormente (como Mistery House, de 1980), mas provavelmente nenhum até então tinha um trabalho visual tão interessante e tecnicamente impressionante quanto The Hobbit.

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Como você pode perceber, The Hobbit também chama a atenção por ter sido parcialmente criado por uma mulher, e isso lá nos idos de 1982, quando o nicho de programação era praticamente um mundo exclusivamente habitado por homens. Na época, ela estudava na Universidade de Melbourne e trabalhava como operadora de computadores em períodos noturnos. Uma troca de mensagens com Alfred Milgrom, da Melbourne House, fez ela entrar no projeto de desenvolvimento de The Hobbit e garantir o seu lugar na história dos games de computador.

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Veronika era uma fã de Colossal Cave, o mítico adventure-texto original que criou esse estilo de jogo. Mas tinha perfeita consciência das limitações do pioneiro game: “Colossal Cave rapidamente se tornava chato. Uma vez que você solucionava o jogo, ele era sempre o mesmo e não havia mais nada de interessante desse ponto em diante“. Ela adotou um conceito diferente ao conceber The Hobbit, motivada a criar o que seria o melhor adventure já feito até então. “Eu coloquei no papel todo o conceito de ter uma rede ou um banco de dados alternável de locações e personagens que jogavam por conta própria, e como isso tudo iria funcionar. Eu desenvolvi o projeto de forma que, ao invés de criar um código prévio para tudo, nós poderíamos substituir o banco de dados dos personagens e dos cenários e terminar com um game diferente nas mãos”, explica. “Era uma questão de adicionar o elemento randômico. Eu tinha a ideia básica de que cada animal seria um personagem e que cada personagem faria algo a cada turno, assim como o jogador tinha. Nós adicionamos um gerador randômico para que, toda vez que o game começasse, cada personagem iniciaria num lugar diferente escolhido aleatoriamente“.

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Além dos gráficos e do sistema não linear, The Hobbit inovava também pelo parsec inovador, denominado Inglish por seus programadores. Ao contrário de games anteriores do estilo, que só admitiam frases sempre iguais e curtas como “kill orc“, “get lamp” e coisas do tipo, em The Hobbit o jogador podia digitar comandos sofisticados como “ask Gandalf about the curious map then take sword and kill troll with it“. Ou seja, uma linha de comando do jogador podia conter várias ações e também pronomes e adjetivos.

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Em termos de narrativa, The Hobbit se mantém bastante fiel ao livro que lhe serviu de inspiração. “Não lembro de isso ter sido particularmente difícil“, explica Veronika. “Eu era muito familiarizada com o livro e adorava ele, e realmente passei por todo o livro pegando elementos de forma tão direta quanto possível, fazendo pequenas modificações que tornassem mais fácil para o jogador imaginar as passagens do texto dentro do contexto do game. Todos nós conhecíamos The Hobbit e The Lord of the Rings – eu havia lido a série inteira várias vezes já naquela época. Para elaborar o jogo, eu examinei o livro, escolhendo partes e locações chave que eu pudesse transformar em puzzles e interações entre os personagens e o jogador“.

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The Hobbit se destacou como um adventure mais graficamente bonito, menos linear, mais flexível no vocabulário e com maior fator de “re-play” do que os jogos do gênero anteriores a ele. Mas isso não significa que ele era livre de problemas. “Fazer a correção de erros no jogo era um pesadelo”, lembra Veronika. “Nossas máquinas de desenvolvimento travavam como resultado de interações e comportamentos de personagens em alguma outra parte do jogo. Você não fazia ideia – simplesmente tinha um erro nas mãos e tinha que imaginar o que tinha acontecido“. A maneira como os personagens se comportavam dava origem, também, a cenários problemáticos: “Você podia terminar numa situação em que o jogo não podia ser completado de forma bem-sucedida. Na medida em que animais e personagens interagiam por conta própria, eles estavam também jogando, e no geral eles não distinguiam o jogador de outros personagens. Era possível que um personagem fosse parar num local com um agressor e que acabasse sendo morto, e se esse personagem fosse necessário para o jogador realizar certas tarefas, você não teria mais como chegar ao final do jogo. Você pode levar várias horas de jogo para descobrir isso“, ri Veronika. “Mas era assim que a coisa funcionava. Eu não fiz nenhuma tentativa de mudar isso, pois eu achava que era algo legal“. Sádica a moça, não?

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Toda a qualidade e a inovação de The Hobbit não passaram desapercebidas. O jogo vendeu mais de 100.000 cópias nos seus dois primeiros anos no mercado, ganhou vários prêmios e se tornou presença garantida e permanente em qualquer lista decente de melhores games lançados para o ZX Spectrum em todos os tempos. É frequentemente lembrado como um dos melhores adventures dos anos 80, e é difícil imaginar a evolução do estilo (que anos depois passou pelo sistema Scumm da Lucas Arts, surgido com o famoso Maniac Mansion) sem o marco estabelecido por The Hobbit.

Veronika não recebeu praticamente nenhum feedback sobre o seu trabalho na época em que The Hobbit foi lançado. Hoje, no entanto, ela afirma receber uma contínua corrente de e-mails sobre o jogo, alguns até bizarros: “Um cara recentemente fez contato comigo, e foi muito engraçado. Ele disse que, há 30 anos atrás, ele estava jogando uma cópia do jogo que pertencia a um amigo. Então, no meio do jogo, ele abriu o drive e retirou o disquete enquanto o jogo rodava. O disco acabou corrompido e, quando o amigo dele tentava jogar, a tela exibia uma mensagem de erro e o jogo nunca mais funcionou. Foi apenas recentemente que o sujeito admitiu que havia estragado a cópia do jogo do amigo, e ele estava me contatando para saber se aquela mensagem de erro tinha algum significado em particular ou se nós colocamos ela lá por algum motivo específico. Eu tive que rir. Trinta anos depois, alguém estava me escrevendo para solicitar suporte técnico!”.

De fato, Veronika só chegou a compreender a importância do seu trabalho muitos anos depois, já na era da internet. “Eu comecei a receber cartas de pessoas que tinham me localizado online, me dizendo que o game havia mudado suas vidas e os tornado fãs de adventures, ou que eles tinham aprendido inglês para jogá-lo, ou como o jogo mudou seus interesses, suas personalidades e até seus planos para o futuro! Foi só então que eu descobri que The Hobbit havia sido lançado num monte de línguas diferentes e em diversos países. Na época do lançamento do jogo, eu não tive nenhum sentimento de valor ou de reconhecimento pelo que nós criamos – mas, décadas depois, eu comecei a perceber o impacto que isso teve. Eu acho que o impacto que o meu jogo teve sobre as vidas de outras pessoas foi muito maior do que o impacto que teve sobre a minha própria vida“, diz ela.

(Fonte consultada: revista Retro Gamer, edição nº 101).